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07 de abril de 2015
AMANHÃ PODERÁ SER TARDE DEMAIS
Por Adelino da Silveira
Ao longo dos anos em que ia a Uberaba, Minas Gerais, conheci
muita gente. Gente boa, gente meio boa e gente menos boa. Algumas, o tempo vai
apagando lentamente, mas jamais terá força suficiente para apagar de minhas
lembranças a figura encantadora que vocês vão passar a conhecer.
Em uma daquelas madrugadas, quando as reuniões do “Grupo
Espírita da Prece” se estendiam até ao amanhecer, vi-o pela primeira vez.
Naquelas filas quase intermináveis que se formavam para a despedida ou para uma
última palavrinha, ainda que rápida, com o médium Chico
Xavier, ele chamou-me a atenção pela alegria com que esperava a sua vez.
Chico Xavier
Vinha com passos cansados, o andar trôpego, a fisionomia abatida,
mas seus olhos brilhavam à medida que se aproximava do médium. Não raro, seu
contentamento se traduzia em lágrimas serenas, mas copiosas.
Trajes pobres, descalço, pés rachados, indicando que
raramente teriam conhecido um par de sapatos. Calça azul, camisa verde, com
muitos remendos; um paletó de casimira apertava-lhe o corpo franzino.
Pele escura, cabelos enrolados e nos lábios uma ferida.
Chamava-se Jorge.
Jorge
Creio que deve ter tomado poucos banhos durante toda a vida.
Quando se aproximava, seu corpo magro, sofrido e mal alimentado exalava um odor
desagradável.
Em sua boca, alguns raros tocos de dentes, totalmente
apodrecidos. Quando falava, seu hálito era quase insuportável. Ainda que alguém
não quisesse, tinha um movimento instintivo de recuo. Quando se aproximava,
tínhamos pressa em dar-lhe algum trocado para que ele fosse comprar pipoca,
doce ou um refrigerante, a fim de que saísse logo de perto da gente.
Jorge morava com o irmão e a cunhada num bairro muito pobre;
uma favela, quase um cortiço.
Seu quarto era um pequeno cômodo anexado ao barraco do irmão.
Algumas telhas, pedaços de tábuas, de plásticos, folhas de lata emolduravam o
seu pequeno espaço.
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O irmão e a cunhada eram boias-frias. Jorge ficava com as
crianças. Fazia-lhes mingau, trocava-lhes os panos, assistia-os. Alma assim
caridosa, acredito que sofresse maus tratos. Muitas vezes o vi com marcas no
rosto, e, ainda hoje, fico pensando se aquela ferida permanente em seu lábio
inferior não seria resultante de constantes pancadas.
Pois o Chico conversava com ele, cinco, dez, vinte minutos.
Nas primeiras vezes, pensava: "Meu Deus! Como é que o Chico pode perder
tanto tempo com ele, quando tantas pessoas viajaram milhares de quilômetros e
mal pegaram sua mão?! Por que será que ele não diminui o tempo do Jorge, para
dar mais atenção aos outros?"
Somente mais tarde fui entender que a única pessoa capaz de
parar para ouvir o Jorge era ele.
Em casa, o infeliz não tinha com quem conversar; na rua,
ninguém lhe dava atenção.
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Quase todas as vezes em que lá estive, lá estava ele também.
Assim, por alguns anos, habituei-me a ver aquele estranho
personagem que aos poucos me foi cativando.
Hoje, passados tantos anos, ao escrever estas linhas, ainda
choro. "A gente corre o risco de chorar um pouco, quando se deixou
cativar,” não é mesmo?
Nunca ouvimos de sua boca qualquer palavra de queixa ou
revolta.
Seu diálogo com o paciente médium era comovente e
enternecedor.
- Jorge, como vai a vida?
- Ah, Tio Chico! Eu acho a vida uma beleza!
- E a viagem, foi boa?
- Muito boa, Tio Chico! Eu vim olhando as flores que Deus
plantou no caminho para nos alegrar.
- Do que você mais gosta de olhar, Jorge?
- O azul do céu, Tio Chico. Às vezes penso que o Sinhô Jesus
tá me espiando por detrás de uma nuvem.
Depois, o visitante falava da briga dos gatos, da goteira que
molhou a cama, do passarinho que estava fazendo ninho no seu telhado.
Quando pensava que tudo havia terminado, o dono da casa ainda
dizia:
- Agora, o nosso Jorge vai declamar alguns versos.
Eu chegava até me virar na cadeira, perguntando a mim mesmo:
"Onde é que o Chico arruma tanta paciência?"
Jorge declamava um, dois , quatro versos.
- Bem Jorge, agora para a nossa despedida, declame o verso
que mais gosto.
- Qual, tio Chico?
- Aquele da moça.
- Ah, Tio Chico! Já me lembrei. Já me lembrei.
Naquelas horas, o Centro continuava lotado. As pessoas se
acotovelavam, formando um grande círculo em torno da mesa.
Jorge colocava, então, o colarinho da camisa para fora,
abotoava o único botão de seu surrado paletó, colocava as mãos para trás, a
semelhança de uma criança quando vai declamar na escola ou perante uma
autoridade, olhava para ver se o estavam observando e sapecava inflado de
orgulho:
"Menina, penteia o cabelo,
Joga as tranças pra cacunda.
Queira Deus que não te leve
De domingo pra segunda!"
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Quando terminava, o riso era geral. Ele também sorria. Um
sorriso solto e alegre, mas ainda assim doído, pois a parte inferior de seus
grossos lábios se dilatava, fazendo sangrar a ferida.
Aí, ele se aproximava do médium, que lhe dava uma pequena
ajuda em dinheiro. Em todos aqueles anos, nunca consegui ver quanto era.
Depois, colocava o dinheiro dentro de uma capanga, onde já havia guardado as
pipocas, os doces, dando um nó na alça do pano.
Para se despedir, ele não se abraçava ao Chico: ele se
jogava, sim, todo por inteiro em cima do Chico! Falava quase dentro do nariz do
Chico e eu nunca o vi ter aquele recuo instintivo como eu tivera tantas vezes.
Beijava-lhe a mão, o qual também beijava a mão e a face dele,
ao que ele retribuía, beijando os dois lados da face do Chico, onde ficavam
manchas de sangue deixadas pela ferida aberta em seus lábios. Nunca vi o Chico
se limpar na presença dele nem depois que ele se tivesse ido. Eu, que muitas
vezes, ao chegar à casa dele, molhava um pano e limpava o que passamos a chamar
carinhosamente de "o beijo do Jorge..."
Não saberia dizer quantas vezes pensei em levar um presente
àquele pobre irmão - uma camisa, um par de sapatos, uma blusa. Infelizmente,
fui adiando e o tempo passando. Acabei por não lhe levar nada.
Lembro-me disto com tristeza e as palavras do Apóstolo Paulo se fazem mais fortes nos recessos de
minha alma: “Façamos o bem, enquanto temos tempo.”
[5] Paulo - Apóstolo
Enquanto temos tempo. De repente, fica tarde demais. Jorge
desencarnou. Desencarnou em uma madrugada fria. Completamente só em seu quarto.
Esquecido do mundo, esquecido de todos, mas não de Deus.
Contou-me o Chico que foi este nosso irmão de pele escura,
cabelos enrolados, ferida nos lábios, pés rachados, mau cheiro e mau hálito que
ao desencarnar, Jesus Cristo veio pessoalmente buscar.
Entrou naquele quarto de terra batida, retirou Jorge do corpo magro e sofrido,
envolto em trapos imundos, aconchegou-o de encontro ao peito e voou com ele
para o espaço, como se carregasse o mais querido dos seus irmãos!
"Eis que estarei convosco até o fim dos séculos."
"Não vos deixarei órfãos."
Ele não faria uma promessa que não pudesse cumprir.
Jesus
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Texto
http://www.forumespirita.net/fe/mensagens-de-animo/jorge-%27kardec-prossegue%27-adelino-da-silveira/#.VSMk1CvF9zg
Fotos
1- http://www.iplay.com.br/Imagens/PapelDeParede/0l62/O_encanto_das_belas_flores_Tulipas_cor_de_rosa
2- http://www.baixaki.com.br/papel-de-parede/13209-o-barraco.htm
3- https://cronicasdeumsolitario.wordpress.com/
4- http://pt.hdscreen.me/wallpaper/2790511-volta-tran%C3%A7as-desenhos-esbo%C3%A7os
5- http://gilsonsantos.com/2013/06/24/o-apstolo-paulo-jan-lievens-2/
Publicado por Mariângela Freitas
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